sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O(s) sobrevivente(s)


Página em construção


Ilustração do problema no artigo Test Your Wits on These Mathematical Puzzles (Mar, 1932)

Eis uma versão do problema retirado de um aritmética portuguesa datada de 1555,Tratado da Arte da Aritmética, de Bento Fernandes

15 Mouros e 15 Cristãos
Quinze cristãos navegando pelo mar toparam uma galé de mouros que trazia 15 mouros e pelejaram tanto, de uma parte e da outra, que se não puderam vencer e abalroaram os mouros e entraram dentro. E quando se acharam tantos de uma parte como da outra vieram a partido que se pusessem todos numa roda os mouros entre os cristãos e que contassem de 1 a 9. E em quem acertasse, quer fosse cristão ou mouro, o lançassem ao mar como chegasse a 9. E assim fossem contando, sempre por diante, até chegar a 9 não tornando para trás. E se acertasse de cair nos cristãos os deitassem ao mar e os mouros levassem a presa e acertando nos mouros os deitassem ao mar e os cristãos levassem a presa.
Pergunto: de que modo se devem pôr os cristãos e os mouros entre eles para que os mouros se deitem todos ao mar e os cristãos fiquem com a vitória?

O autor português persegue com a resolução:

E por que entre os cristãos havia um homem experimentado na conta, os pôs em ordem de modo que os mouros foram todos lançados ao mar e ficaram os cristãos vivos e com vencimento.
E a maneira como se fez sabereis agora: primeiro põe 4 cristãos e depois 5 mouros e depois 2 cristãos e logo 1 mouro; e adiante 3 cristãos e depois 1 mouro; depois 1 cristão e depois 2 mouros  e adiante 2 cristãos e logo 3 mouros; e depois 1 cristão e depois 2 mouros; e depois 2 cristãos e adiante 1 mouro.
E assim fazem por todos 30, entre cristãos e mouros, e postos assim em ordem, em roda, como está dito, começando a contar primeiro dos 4 cristãos por diante até chegar a 9, contando adiante sempre sem tornar atrás até chegar a outros 9 e como chegar a 9, lançá-lo ao mar...
Diagrama do manuscrito do francês Nicolas Chuquet, 1484

Outras versões do problema

Este problema envolve determinar a posição inicial das pessoas que permanecem na roda, inicialmente com um determinado número N de pessoas, depois de algumas terem sido eliminadas através de um processo de contagem de m em m, que tem início numa determinada posição.

O número de pessoas, inicialmente na roda, e o processo de contagem variou ao longo do tempo e de autor para autor, assim como o número de sobreviventes no final da contagem, mas, essencialmente, as versões mais comuns são as seguintes:
  • as pessoas estão divididas em dois grupos, um dos quais é eliminado;
  • apenas uma das pessoas sobrevive, ou seja todos, excepto a última pessoa, são eliminadas.


A origem do problema

A primeira versão do problema parece ser a mais popular nas aritméticas dos séculos XV e XVII e a mais antiga Smith intitula este tipo de problemas por Cristãos e Turcos. O problema tem origem no folclore irlandês do século IX (Murphy, 1942) , com proveniência nalguma brincadeira infantil.
No folclore irlandês os dois grupos são seleccionados por uma mulher, e em vez da distinção associada à religião, comum à maioria do problemas nas diversas culturas, a distinção tem a ver com questões amorosas. (Murphy, 1942)

A segunda versão do problema aparece em muitos autores Japoneses, não se sabe ao certo a sua origem.  
Alguns autores alegam que o problema poderá ter sido importado para o Japão por Jesuítas portugueses, mas para David Singmaster  o problema terá aparecido do Japão, no século XI, independentemente da Europa, a seguinte versão aparece num manuscrito japonês de 1627. 
  
Era uma vez, um rico agricultor que tinha 30 filhos, 15 da sua primeira mulher, que tinha morrido, e 15 da sua segunda mulher. A segunda mulher estava ansioso que seu filho mais velho deve herdasse a propriedade. Então um dia ela lhe disse:
"Querido marido,devemos resolver quem será o teu herdeiro. Vamos organizar os nossos 30 filhos num círculo, e contando a partir de um deles de 10 em 10, retiramos todos os filhos até ficar só um, que será o seu herdeiro ". 

A proposta parecia razoável. Mas há medida que decorria o processo de seleção, o agricultor ficou surpreendido ao notar que os primeiros 14 filhos a serem excluídos eram os da sua primeira esposa, e apercebeu-se que o próximo a sair do círculo seria o único filho da sua primeira mulher que ainda se encontrava no círculo. Então ele sugeriu que deveriam ver o que aconteceria se começassem a contar para trás a partir deste seu filho. A mulher, forçado a tomar uma decisão imediata, e refletindo que as hipóteses eram agora 15 para 1 em favor dos seus filhos, concordou.


ilustração do livro japonês Shinpen jinkoki, 1627

  
Ilustação do livro japonês Jingoki deYoshida Mitsuyoshi, 1634
Parece ter sido Cardano, em 1539, que associou o problema pela primeira vez a Josephus Flavius [Flávio Josepo)

Josephus Flavius um judeu do século I,  enfrentou as tropas romanas  em 67 que invadiram a cidade de Jotapata. Ele e quarenta homens, esconderam-se em uma cisterna. Com a descoberta do esconderijo, foi-lhes proposto que se rendessem, mas preferiram o suicídio coletivo. Josefo terá sugerido colocarem-se em círculo e de três em três uma pessoa seria morta, até que houvesse só uma pessoa no final que se suicidaria; no fim apenas Josefo e mais um homem permaneceram vivos, que tinham escolhido as posições 31.ª e 16.ª do círculo.



Janela da Real Basílica do Santuário de Vera Cruz. A aplicação da resolução do problema de Josephus permitiu uma reorganização d
os sinais ao redor da janela e facilitou sua tradução, pelo historiador  Pablo Alonso.

Personagens e culturas
Maior parte dos autores que mencionam este problema dão exactamente a versão de Bento Fernandes transcrita em cima. No entanto, as personagens da história nem sempre são as mesmas.

A versão mais comum, durante a Idade Média na Europa envolve 15 cristãos e 15 turcos durante uma tempestade, mas é vulgar os turcos serem substituídos por sarracenosmouros (no caso português) e judeus, no final, como seria de esperar, os cristãos sobrevivem.

Fillipo Calandri, em cerca de 1500, fornece uma versão com duas ordens religiosas, os Franciscanos e os Calmodolesos numa peregrinação a São Sepulcro, como se pode ver na imagem, é um franciscano que comanda a distribuição, donde de pode deduzir qual o grupo de sobreviventes!

Quando a versão é fornecida por muçulmanos, como por exemplo al-Safadi, cerca de 1370, são os infiéis, que no final, são totalmente dizimados, e os muçulmanos salvos.

No texto, do judeu espanhol ben-EzraTa'hbula de cerca de 1150, ao que parece, a personagem que faz a distribuição é o próprio ben-Erza, distribuindo os 15 alunos e os 15 patifes, de tal forma que os alunos são salvos. Ao que se sabe a versão de ben-Ezra é a primeira a história aparece contada num barco.

Numa história indiana 15 homens bons são salvos e 15 ladrões são dizimados

No século XX, várias versões aparecem em forma de puzzle, que são comercializados.

A seguinte versão foi comercializada pela empresa londrina 
Unicorn Products Ltd., em cerca de 1930.


CANNY SKIPPER PUZZLE
Neste puzzle existe um tabuleiro de jogo onde está representado um barco com 30 lugares e 15 peças pretas e 15 peças brancas, representado os britânicos e os bandidos. 

Para outras versões ver: Os burgueses enganados.

Grupos e contagens

Embora maior parte dos autores tenha dado a versão envolvendo dois grupos de 15 personagens, cada, e em que um dos grupos é eliminado após uma contagem de 9 em 9. Muitos referem outras versões.

Tartaglia (1499 - 1557), por exemplo, dá exemplos com 15 judeus e 15 cristãos, contados desde 3 a 3 até 12 a 12. A imagem ao lado refere-se ao diagrama apresentado por Buteo, em 1559, para a resolução, dos 15 judeus e 15 cristãos contados de 10 em 10.
Chuquet, no seu Triparty, de 1484, generaliza dizendo que podemos ter grupos de 18 cristãos e 18 judeus, ou 24 cristãos e 24 judeus, ou qualquer outro número de pessoas, contados de 10 em 10 ou de 11 em 11 ou como quisermos.

Pacioli (1445 - 1517), em De Viribus quantitatis, fornece três versões com apenas 2 cristãos. Uma, apresentada ao lado, com 30 judeus, contados de 9 em 9, salvando-se, no final, os cristãos. E ainda, os dois exemplos seguintes:

2 cristãos e 18 judeus, contados de 7 em 7
  2 cristãos e 30 judeus, contados de 7 em 7.

O problema também aparece só se salvando no final uma das pessoas. Provavelmente o primeiro matemático a introduzir esta versão foi Girolamo Cardano, em 1539. Euler, no seu livro de 1775, Observationes circa novum et singulare progressionum genus, parece ter sido o primeiro a considerar um algoritmo geral para o caso de um único sobrevivente.

Na seguinte página poderá jogar este problema, escolhendo um número de pessoas até 50 e a contagem que pretender:



O problema pode ser generalizado a qualquer número de pessoas, havendo no final um qualquer número de sobreviventes e efectuando-se a contagem que se pretender!

Resolução e mnemónicas

Caso não se pretenda um algoritmo que permita determinar a posição em que se é eliminado, o problema é fácil de resolver. Ozanam, 1778, sugere a seguinte resolução aplicada ao caso em que se quer eliminar 10 pessoas de um total de 40, contando de 12 em 12. 

Colocam-se em círculos 40 «zeros» e começando pelo primeiro, marca-se no décimo segundo uma cruz, continuamos a contar até 12 e marca-se igualmente uma cruz, e assim sucessivamente, tendo em atenção que se deve passar por cima dos que já estão marcados, ..., e então contando a posição [que os marcados] ocupam, começando pelo primeiro, conhecemos facilmente aqueles sobre os quais caí, necessariamente, a contagem de 12 em 12.

Embora o problema seja de muito fácil resolução, muitos autores, a partir do século XII, desenvolveram mnemónicas para se saber, como dispor os «bons» e «maus».  A mais comum para o problema dos 15 cristãos e 15 turcos, contados de 9 em 9, dada, por exemplo, por Chuquet é:
  4  5  21     3   1       1 2    2 3  1  2  2 1
Populeam virgam mater regina tenebat

Em que a = 1, e = 2, i = 3, o = 4, u = 5
e que nos indica que se deve começar por 4 cristãos, seguidos de 5 turcos (judeus), depois 2 cristãos, ...

As duas mnemónicas seguintes têm a mesma equivalência entre as vogais e os algarismos:
Pacioli (1445 - 1517)
Ozaman, 1778


Página criada a 01-04-2004                                                  Última atualização 20-12-2013

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